Desconsideração da personalidade jurídica com base no código de defesa do consumidor
Desconsideração da personalidade jurídica no Brasil: teoria, aplicação no CDC, proteção ao consumidor e jurisprudência recente. Por Bruno Machado.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que remonta ao início do século XX nos Estados Unidos com o caso emblemático Salomon v. Salomon & Co. Ltd., julgado pela Câmara dos Lordes no Reino Unido, fundamenta a separação entre a personalidade jurídica da empresa e seus sócios. Com o tempo, identificou-se que essa separação poderia ser explorada para fins ilícitos, surgindo a necessidade de criar mecanismos que permitissem, excepcionalmente, ultrapassar essa barreira.
Nos Estados Unidos, onde a teoria é conhecida como “piercing the corporate veil”, ela é aplicada de forma mais liberal comparativamente a muitos sistemas de civil law, como o Brasil, onde a legislação é mais prescritiva. A experiência internacional revela um espectro de aplicação variando desde critérios estritamente definidos até abordagens mais flexíveis, refletindo o equilíbrio entre a proteção ao credor e a segurança jurídica para os sócios.
No Brasil, a desconsideração da personalidade jurídica foi inicialmente reconhecida pela jurisprudência e, posteriormente, recebeu previsão legal com o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) em seu artigo 28, consolidando-se com o novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002) em seu artigo 50. Outras legislações, como as trabalhistas e de sociedades anônimas, também começaram a prever a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ).
A adoção dessa teoria representou um avanço significativo na tutela dos direitos dos credores e na promoção da justiça nas relações comerciais e civis, embora persistam dúvidas quanto à extensão e circunstância de sua aplicabilidade. Particularmente nas relações de consumo, a desconsideração se destaca pela relevância inquestionável, confrontando situações onde credores podem confundir propositalmente inadimplência com ato ilícito, e magistrados aplicam este instituto visando ressarcimento a todo custo.
O § 5º do art. 28 do CDC foi introduzido para ampliar a possibilidade de desconsideração em relações de consumo, adotando a “teoria menor”, onde não se exige comprovação de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, bastando a demonstração de que a personalidade jurídica representa um obstáculo ao ressarcimento. Esse dispositivo foi concebido para fortalecer a defesa dos direitos do consumidor, refletindo as peculiaridades e a vulnerabilidade dessas relações.
Essa distinção entre “teoria menor” e “teoria maior” — esta última predominante no direito civil e empresarial, exigindo evidências claras de fraude ou desvio de finalidade — evidencia o esforço do ordenamento jurídico brasileiro em proteger os consumidores.
Entretanto, permanece a questão: seria o insucesso do negócio ou mera inadimplência suficiente para configurar o uso da personalidade jurídica como obstáculo ao ressarcimento? O IDPJ no CDC introduz uma nova modalidade de responsabilidade objetiva?
Neste contexto, ficamos muito satisfeitos com o resultado do julgamento do nosso Recurso Especial nº 1.900.843, que surge como um marco significativo ao reconhecer que a desconsideração não se aplica automaticamente em face de uma pessoa que, embora tenha figurado como sócio, não participou da gestão ou se desligou da empresa muito antes do surgimento do débito. O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva destacou que a “Teoria Menor” não dispensa a comprovação de que o sócio contribuiu para os atos de gestão que resultaram nos prejuízos alegados.
Este julgamento reforça a necessidade de uma aplicação criteriosa da desconsideração da personalidade jurídica, respeitando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, e sublinha a importância de não utilizar essa ferramenta jurídica de maneira indiscriminada, garantindo que apenas aqueles que efetivamente contribuíram para o ato ilícito sofram as consequências.
Assim, a trajetória da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil destaca sua importância como mecanismo de justiça e equidade, sendo essencial para a evolução do direito e a adaptação às complexidades das relações modernas, mantendo-se um campo fértil para a análise jurídica e a evolução doutrinária.
Bruno Azevedo Machado, sócio do Azevedo Machado Advocacia. Graduado pelo Uniceub e pós-graduado pela FGV. Especialista em Direito das Sucessões, com extenso conhecimento em Direito Civil e Processual Civil. Sua expertise inclui litígios, contencioso de massa, contratos, responsabilidade civil e questões de direito de família, sucessões e planejamento patrimonial.